Um Século de Congelamento
Artur Soares Alves
16-Ago-2012
Com frequência é dito em público que Salazar inventou
o congelamento das rendas, o que é redondamente errado. No livro O Congelamento das Rendas Urbanas, editado pela CNAPI em 1995, conta-se
em pormenor o aparecimento e a manutenção do congelamento das rendas. Dado que este livro não é secreto, embora pareça andar escondido,
há muito que se deveria ter deixado de atirar as culpas ao antigo presidente do Conselho.
No entanto, o erro é repetido uma vez
e outra vez. Compreende-se a malandrice. Contra os admiradores de Salazar usa-se implicitamente o argumento de que se Salazar o fez
é porque está bem feito. Para os outros diz-se que a culpa não é nossa mas é sim mais um elemento da pesada herança.
Para ajudar
a desfazer esta história falsa publica-se o quadro abaixo. Com esta publicação, o leitor que queira pôr um ignorante na ordem só tem
que dar-lhe o link desta mesma página:
http://pl.proprietarios.pt/artigos/b49/um-seculo.htm.
Todavia — cuidado! — porque em PortugalEles têm o curso completo. Quando admitem os cem anos acrescentam que se a coisa é tão antiga, então já não pode resolver-se.
Em
todo o caso, a nova lei foi publicada anteontem. Para os proprietários, sobretudo para os que faleceram na pobreza, é seguramente
pouco. Todavia, o quadro seguinte mostra como ela representa uma mudança num país que se habituou a cardanhar as poupanças de quem
trabalha, poupa e cumpre as leis.
Não esqueçamos também que o congelamento sem inflação não serve para nada, isto é, não serve
para tirar a Pedro e dar a Paulo. O congelamento forma uma tenaz em conjunto com a inflação. E desta inflação houve em abundância
entre 1910 e os dias de hoje.
Ano |
Acontecimento |
1910 |
Implantação da República. Publicação do Decreto de 12-Nov-1910 congelando
das rendas por um ano. Centenário que passou em 2010 e que foi modestamente comemorado. |
1914 |
Decreto 1079 de 23-Nov. A pretexto da
Grande Guerra decreta-se o congelamento total das rendas: uma casa fica com a renda congelada ao valor na data do decreto, mesmo que
venha a estar devoluta. Obrigação penal de arrendar casas devolutas pela renda em vigor à data do decreto. |
1917 |
Lei 828 de 28-Set.
Faz pequenas correcções ao decreto de 1914, reforçando os aspectos repressivos daquele. |
1918 |
Decreto 4499 de 29-Jun. Governava Sidónio
Pais. Prolonga o período do congelamento. Revogado em 17-Abr-1919. |
1918 |
Decreto 4952 de 13-Nov. Reforça os aspetos repressivos do anterior. |
1919 |
Decreto
5411 de 17-Abr. Reúne toda a legislação sobre o arrendamento. Faz uma alteração importante porque a legislação congeladora anterior
tomava como pretexto a Grande Guerra que entretanto acabara em 11-Nov-1918. Assim, essa legislação era considerada de exceção. Agora
a legislação considera o congelamento como uma situação normal, mantendo o congelamento para sempre. E definindo punições para quem
recuse arrendar. |
1920 |
Lei 1020 de 18-Ago. O Estado legisla em proveito próprio: “Não poderá ter seguimento qualquer acção de despejo
de prédios urbanos de que seja inquilino o Estado”. |
1923 |
Decreto 9118 de 10-Set. Manda corrigir as rendas congeladas multiplicando-as
por coeficientes muito inferiores ao aumento do custo de vida — e dos salários — registado após 1914. |
1928 |
Decreto 15.289 de 30-Mar.
Pretende descongelar algumas rendas embora para valores inferiores ao aumento dos preços. Anulado pelo decreto 15.315 publicado 5
dias depois. |
1943 |
Decreto 32.638 de 22-Jan. Regressa ao congelamento para os prédios que entretanto tinham sido arrendados. |
1948 |
Lei
2030 de 22-Jun. A grande lei sobre o inquilinato publicada pelo Estado Novo. Essencialmente alinha o valor das rendas pelo valor matricial
dos prédios, ou o rendimento ilíquido que é atribuível a estes, referente a 1937. As rendas habitacionais poderiam voltar a atualizar-se
por reavaliação fiscal, que fica interdita em Lisboa e Porto. Esta situação vai permanecer até 1985. Portanto, Salazar corrigiu alguma
coisa mas manteve em vigor o congelamento, embora o tenha atenuado; e os efeitos fossem também atenuados pela estabilidade da moeda. |
1969 |
Estudo
do conselheiro Gonçalves Pereira, sob ordem do Ministro da Justiça, concluindo que as rendas estavam entre um quinto e um quarto do
valor que teriam se acompanhassem a desvalorização da moeda. |
1974 |
Decreto-lei 217/74 de 27-Mai. Regressa o congelamento das rendas
no espírito de 1914, por 30 dias… Decreto-lei 445/74 de 12-Set. Fixa em definitivo o congelamento juntamente com a obrigação de arrendar. |
1975 |
Decreto-lei
198-A/75. Entre outras coisas legaliza as ocupações selvagens de prédios devolutos. É este o diploma que ficou conhecido como lei
Portas. |
1982 |
Lei 2/82 de 15-Jan. Estabelece um regime especial de proteção para as “repúblicas” de Coimbra. |
É certo que houve alguma
legislação que foi anunciada como pretendendo descongelar as rendas. Além daquela que se cita acima, de 1923 e 1948, temos:
Decreto-lei
148/81, possibilitando rendas quase livres e atualizáveis, mas somente para os novos contratos. Casa roubada, trancas na porta…
Lei
46/85, que quebrou o tabu do congelamento em Lisboa e Porto. No entanto previa aumentos das rendas incompatíveis com a inflação decorrida.
Decreto-lei
321-B/90, chamado RAU, e que no campo habitacional vem aperfeiçoar a lei 46/85. Pelo ano em que foi publicado — quando quantidades
brutais de dinheiro entravam em Portugal após adesão à Comunidade Europeia — e pela ausência de reformas reais, merece o nome de decreto
das oportunidades perdidas.
Decreto-lei 257/95 de 30-Set. Permite finalmente arrendamentos não-habitacionais com termo certo.
Lei 6/2006 de
23-Fev, conhecido por NRAU, contém também modificações no Código Civil respeitantes aos contratos de arrendamento. Define um processo
de descongelamento das rendas que não é realista, nem aplicável. Foi mais um flop.
Lei 31/2012 de 14-Ago. Publicada anteontem e da
qual ainda é cedo para comentar.
Inflação
Como se disse o congelamento é parte de uma tenaz, a outra parte é a inflação.
Só assim são cumpridos o objetivo de tirar a riqueza a quem a poupou para a dar a quem é amigo do sistema político. A inflação também
é chamada aumento do custo de vida — aumento para alguns, boa vida para outros. Significa que, por exemplo, o que se comprava com
100 escudos em 1910 necessitava de 2.219 escudos para se comprar em 1930.
Quem sofre com a inflação são os chamados titulares
de rendimentos fixos. Assim, os salários e as pensões foram subindo, tal como os lucros comerciais mas as rendas permaneceram fixas
porque o Estado se recusava a reconhecer a desvalorização da moeda, ao mesmo tempo que anualmente é publicada a tabela de desvalorização
da moeda.
Damos a seguir alguns exemplos tirados da Portaria 282/2011 de 21 de Outubro. Como em cada ano o Ministro das Finanças
publicou os coeficientes de desvalorização da moeda. Estes coeficientes são baseados no índice de preços no consumidor, que mede a
inflação, mas habitualmente reconhece uma desvalorização inferior à indicada pelo IPC. Em todo o caso, vejamos alguns exemplos:
|
Desvalorização |
Entre
1911 e 1930 |
22,19 |
Entre 1937 e 1948 |
2,14 |
Entre 1974 e 1985 |
9,28 |
Entre 1985 e 2006 |
3,30 |
Entre 1911 e 2011 |
3.870,90 |
O que estes números
mostram é a inanidade das anunciadas correções das rendas congeladas.
FIM