O Direito de Propriedade no Contexto Europeu
Artur Soares Alves
7-Jul-2011
Texto incluído numa petição ao Parlamento
Europeu apresentada em Bruxelas em 19-Dez-2007.
A Europa é possivelmente a construção política mais perfeita de todos
os tempos. Resultado de uma evolução que em muitas épocas foi violenta e dolorosa, o Continente Europeu afirma-se como um espaço de
paz, tolerância e bem-estar económico como a Humanidade nunca conheceu, a não ser em locais restritos e por períodos de tempo curtos.
Os tratados unificadores europeus, pesem embora as divergências pontuais que suscitam e o bom fundamento de algumas críticas, terão
como consequência coordenar e unificar o Direito europeu de forma a alinhá-lo pelo que há de mais progressista na protecção dos direitos,
permitindo ao indivíduo o total desenvolvimento da sua personalidade.
Todavia, tal como um rei que, no ambiente confortável
da sua corte, tende a ignorar a origem e a fonte da sua riqueza, também o pensamento político europeu tende a esquecer as suas origens
tomando como definitivamente adquiridas as conquistas sociais que tornam a Europa tão diferente dos outros continentes. De facto,
sem a criação permanente de riqueza não é possível sustentar o modelo no qual se baseia a paz política e social de que Europa desfruta.
Quando a China era já um país unificado e dotado das instituições de um Estado, a Europa era um arquipélago de colónias do Império
Romano ou de países bárbaros nas margens deste. As invasões bárbaras que destruíram o Império vieram deitar por terra todas as instituições
romanas e seguiu-se um longo período de hibernação, em todos os planos que constituem a vida das nações organizadas. Assim, enquanto
que em Córdova e Granada as ciências floresciam sob o olhar benigno da ordem política muçulmana, enquanto que a herança grega reunida
em Alexandria era lida e traduzida pelos escolares árabes, que também importavam da Índia um novo sistema de numeração; enquanto isso
a Europa batia-se incertamente com a necessidade de sobrevivência, com a fome, com as doenças e com todos os malquistos companheiros
da pobreza.
No entanto, passados poucos séculos os Europeus navegavam pelos mares mais longínquos, trocavam mercadorias com
os povos mais distantes e iniciavam uma revolução tecnológica que trouxe riqueza à Europa e ao mundo e com esta, todos os seus benquistos
companheiros, como a saúde e uma razoável certeza sobre o dia de amanhã.
Porém, como se disse, depressa se esquecem os princípios
em que se baseou todo este inegável progresso e as nações, eventualmente confundidas pela difusão uma vulgata política rudimentar,
poderão vir a pensar que serão as disposições benevolentes da natureza, ou qualquer outro factor misterioso o que possibilita este
estilo de vida tranquilo e este bem-estar material.
Seja qual for o prisma pelo qual se examine
a questão do desenvolvimento económico europeu, a base sobre a qual se construiu o poderio mundial e base sobre a qual assenta o actual
modo de vida europeu, a resposta é uma só: o direito individual de propriedade.
Isto significa o direito de cada indivíduo guardar
para si a riqueza que adquire legitimamente, como fruto do seu trabalho e do seu engenho. É neste direito que o indivíduo encontra
o estímulo para produzir e inovar. É sobre este direito que assentam os outros direitos individuais porque sem autonomia económica
o indivíduo não se distingue do servo. Mesmo ao servo são reconhecidos alguns direitos de propriedade que o distinguem do escravo.
As navegações e o comércio, assim como sofisticado sistema financeiro que se foi criando, só se compreendem como inovações individuais
que sejam protegidas pelo direito de propriedade. A história da colonização romana do norte de África oferece um exemplo impressionante
do contraste entre uma ordem política que respeita o direito de propriedade e uma outra ordem política que simplesmente o ignora.
Onde hoje é o deserto hostil à vida humana ergueram-se cidades majestosas como Timgad, assim descrita pela The Cambridge Encyclopaedia:
"antiga cidade romana de Thaugadi, no nordeste da Argélia. Fundada pelo imperador Trajano em 100 d. C. e abandonada depois do
século V é um notável exemplo do planeamento romano".
As invasões dos povos bárbaros que se estenderam pelas duas margens do
Mediterrâneo destruíram a ordem económica vigente, puseram fim à riqueza e a areia do deserto tudo veio cobrir.
A questão do direito
de propriedade é incontornável em qualquer sociedade emergente de uma economia de subsistência marcada por uma pobreza crónica. Põe-se
de imediato o problema do que vai acontecer aos excedentes produzidos, isto é, quem irá beneficiar desses excedentes. O problema só
não se põe numa sociedade que consuma na sua subsistência tudo aquilo que produz.
Porém, uma vez que esteja estabelecido que
existem excedentes torna-se incontornável a questão de saber a quem estes pertencem, isto é, quem deles deve desfrutar. Esta questão
é decisiva porque da resposta dada depende a produção de novos excedentes. De facto, os excedentes não são geralmente o resultado
de uma melhoria súbita de produtividade da colectividade entendida de uma forma inorgânica; eles são o resultado do trabalho ou da
sabedoria de um indivíduo. Ora, se a comunidade, usando de um poder discricionário, avoca para si o proveito da riqueza que um dos
seus membros criou, então este voltará simplesmente à pobre rotina da vida comunal.
Por isso mesmo nas tribos que vivem em regime
de comunidade quase total dos bens existem sempre alguns preceitos garantindo direitos de propriedade, por exemplo, sobre a caça apanhada.
Sempre que se descobrem novos recursos naturais e que existe o risco do seu esgotamento, a única forma de se garantir uma boa
gestão destes recursos é fazer participar o interesse próprio dos indivíduos nesta gestão. Foi assim com os Índios americanos da Foz
do Rio São Lourenço, Canadá, que não conheciam a propriedade privada antes de descobrirem, no contacto com os comerciantes europeus,
que as peles eram um recurso valioso e transacionável.
Não é o momento de fazer a história da Europa,
porém, no lento caminhar da servidão medieval até às liberdades dos dias de hoje a reivindicação dos direitos de propriedade foi sempre
um ponto essencial. Foi a extensão progressiva do direito de propriedade que estimulou o engenho dos artesãos, dos navegadores e dos
comerciantes levando-os a inovar nos métodos de produção e de troca, levando-os a correr riscos pessoais e patrimoniais para melhorarem
a sua situação económica.
Foram estas ignoradas e esforçadas gentes do passado quem criou o quadro económico e legal em que
floresce o cidadão europeu com os seus direitos protegidos. Cidadãos independentes e orgulhosos, espíritos livres, criativos e apegados
às suas liberdades.
Este cidadão é a maior oferta que a Europa faz ao mundo. O respeito que a condição de europeu suscita em
qualquer continente é o fruto desta liberdade que, para nós, se inscreve no mais natural dos direitos.
Ora esta liberdade não
seria possível sem o respeito pelo direito de propriedade. As experiências recentes da sua negação mostram-no com a maior das evidências.
A União Soviética e a Europa de Leste são das mais lamentáveis experiências de destruição do indivíduo, novamente reduzido à condição
de servo. Notavelmente, os países dessa área geopolítica onde a vida era mais livre foram também aqueles em que se introduziu algum
respeito pelo direito de propriedade — ao qual melhor se chamaria liberdade de possuir propriedade.
O proprietário que se sente
seguro dos seus direitos é um cidadão pacífico e cumpridor da lei. O seu próprio interesse consiste em valorizar a sua propriedade
e defendê-la dos intrusos, sendo por isso um activo criador de riqueza colectiva e um interessado na paz pública. É isto o que nos
ensina a comparação histórica das tribos nómadas e agressivas, com os povos agrícolas e pacíficos. O interesse na propriedade estende-se
facilmente ao interesse na integridade da pátria, ao interesse nos valores de equidade, à virtude da poupança — e a muitas outras
virtudes em que assenta a civilização europeia e o nosso sistema de liberdades. Como Lee Kuan Yew explica de forma eloquente:
"I
wanted a home-owning society. I had seen the contrast between the blocks of low-cost rental apartments, badly misused and poorly maintained,
and those of housepride owners, and was convinced that if every family owned its home, the country would be more stable". (...)
"We
thought it best to reinforce the Confucian tradition that a man is responsible for his family --- his parents, wife, and children."
(...)
"Owning assets, instead of subsisting on welfare, has given people the power and the responsibility to decide what they want
to spend their money on."
Esta é uma outra questão que ganha importância crescente com as dificuldades
do sistema de segurança social. Algum cálculo financeiro simples mostra que o sistema de segurança social sofreu de uma gestão imprudente
até um passado recente. Resultou isso da tendência individual para consumir até à saciedade os recursos que parecem não ter dono —
tal como se manifesta no consumo dos recursos naturais. Hoje essa tendência esbarra com a escassez e os governos europeus têm que
lidar com o problema nas suas várias vertentes. Sob o entendimento de que a questão do aforro a contar com a velhice e a doença não
deve ser opcional, cada cidadão europeu terá que justificar a posse de activos que garantam uma velhice digna. Estes activos podem
ser geridos pelo Estado, por fundos de pensões, ou pelo próprio. O sistema será tanto mais eficiente quanto mais livre for. Neste
caso o cidadão prudente irá dividir as suas poupanças pelas três vertentes do sistema, reservando para a sua própria gestão alguma
propriedade imobiliária.
Porém, um sistema que funcione em plena liberdade e que devolva aos cidadãos a responsabilidade pelo
seu futuro somente pode funcionar se for protegido pelo direito de propriedade. É preciso ver que um investimento que tem em vista
a protecção na velhice é um investimento de muito longo prazo e que um investimento destes é impossível sob condições de insegurança.
Vem muito a propósito recordar o que aconteceu com uma forma de ataque ao direito de propriedade muito praticada: o congelamento das
rendas. Foram muitas as pessoas que adquiriram prédios cujo rendimento havia de lhes garantir uma velhice digna e que vieram a cair
na pobreza ou quase pobreza devido a uma actuação discricionária do Estado.
São estas verdades que a
Europa não deveria esquecer enquanto se dão passos efectivos na sua unificação. Porém, sob a influência de um pensamento pseudo-racional
— que é subsidiário da escolástica e que não se apoia nos factos — verifica-se uma tendência para passar ao lado do direito de propriedade
como se este fosse uma velharia sem uso. Esta atitude corresponde à mentalidade do free-rider que faz uso dos bens criados pelos outros
sem retribuir por sua vez as benesses que recebe.
Ao ignorar o direito de propriedade o Estado comporta-se também como um free-rider e
induz na população uma mentalidade análoga. Em vez de fomentar a cidadania fomenta comportamentos irresponsáveis e anti-sociais.
O
Tratado Europeu (assinado em Lisboa em 2007) consagra o direito de propriedade no seu artigo 17º. Contudo um direito que são seja
devidamente enquadrado e regulamentado fica reduzido a uma mera declaração de intenções. De facto, sempre que o direito de propriedade,
tal como o direito à vida ou à liberdade, entra em conflito com o interesse público — ou mesmo com interesses privados que se escondem
por detrás do interesse público — gera-se uma situação de incerteza que é resolvida a favor do mais forte. Neste contexto a lei não
cumpre a sua função de protector da parte mais fraca e de factor de coesão social. E uma sociedade regida por leis incertas facilmente
se desagrega.
O direito individual à liberdade de circulação é para os europeus do século XXI um axioma irrefutável que se inscreve
no mais natural dos direitos. Contudo ele admite excepções quando o seu exercício põe em causa os direitos de outros cidadãos, como
é o caso de pessoas comprovadamente perigosas; e a privação da liberdade é usada com meio de punição de crimes tipificados. Contudo,
o que importa registar é que as excepções a esta liberdade são cuidadosamente regulamentadas de forma a impedir que o Estado ou particulares
a possam limitar. A liberdade de circulação não seria um direito real sem a existência de garantias e sem a tipificação rigorosa das
suas excepções.
Uma excepção notável à liberdade individual, de resto liberalmente admitida na Europa durante o século XX, foi
o serviço militar obrigatório. Era admissível que o Estado retirasse qualquer cidadão jovem da sua casa para o manter num regime de
semi-reclusão durante um tempo razoavelmente longo. Indo mais longe, admitia-se que o Estado pudesse enviar estes jovens para o campo
de batalha, porventura comandados por generais incompetentes. O resultado deste poder discricionário do Estado foi duas guerras fratricidas
na Europa e a quase destruição da civilização. Acendidos os ódios terríveis entre as nações europeias, somente a nobre visão dos fundadores
da ideia europeia permitiu sarar as feridas abertas por estas duas guerras do século XX.
O resultado da não tipificação das
excepções ao direito de propriedade — ou à liberdade de possuir propriedade — virá seguramente a produzir os mesmos resultados. O
indivíduo que se sente sem protecção económica própria torna-se um desenraizado, alheio aos deveres para com a sociedade em que vive.
Esta foi a fonte do desespero de milhões de pacíficos cidadãos alemães que vieram engrossar as fileiras do partido nacional-socialista.
Privados das suas poupanças, lançados na pobreza, temendo pelo futuro, nada os prendia aos valores da Pátria alemã.
Um dos problemas de maior acuidade no tocante ao direito de propriedade, sobretudo no caso da propriedade imobiliária,
é a questão fiscal. O que vigora quase por todo o mundo é um imposto sobre a propriedade que em termos claros é um imposto sobre as
poupanças passadas que foram convertidas em propriedade imobiliária. A questão torna-se confusa porque a propriedade é uma fonte de
despesas para a colectividade e estas despesas têm que ser suportadas pelos proprietários. Dada a suposta dificuldade num cálculo
exacto da razoabilidade dessas despesas e colocadas estas sob a égide de um imposto sobre a fortuna, abre-se o caminho ao comportamento
discricionário dos governos municipais.
É notável como a questão foi antevista na encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891.
Depois de dissertar sobre as vantagens da propriedade privada acrescenta:
"Mas uma condição indispensável para que todas estas
vantagens se convertam em realidades, é que a propriedade privada não seja esgotada por um excesso de encargos e de impostos."
A
única forma de tornar os governos municipais e nacionais eficientes é através da competição, e a competição somente funciona onde
há informação. Através da criação de institutos nacionais será possível comparar a eficiência da gestão urbana, dando informações
preciosas aos investidores bem como aos cidadãos que pretendem adquirir a propriedade para uso próprio. O investimento deslocar-se-á
para os municípios que forem mais eficientes na gestão da cidade — ipsum est, aqueles que cobram menores impostos municipais e melhor
respeitam a propriedade. Estes municípios enriquecem, enquanto que aqueles que cederem à negligência na gestão do interesse público
empobrecem.
Esta é uma questão crucial que se põe globalmente à Europa. Se este espaço político for igualmente um espaço de
liberdade, se os direitos efectivos, aqueles que verdadeiramente contam para o cidadão, forem respeitados muita da riqueza criada
fora deste espaço político virá procurar aqui a protecção que não encontra noutras nações. O capital assim importado favorece a riqueza
dos Europeus.
Pelo contrário, pode muito bem acontecer que a riqueza criada na Europa parta para lugares distantes, para países
cuja prática política (mesmo contra a respectiva ideologia) os leve ao respeito do Direito de Propriedade que aqui se não encontraria.
FIM