O Programa do Governo
Artur Soares Alves
21-Jul-2011
As últimas eleições realizaram-se em estado de tensão política,
constrangidas pelo Memorando de Entendimento que Portugal, pelas suas elites políticas, se comprometeu a aplicar. O governo que saiu
destas eleições detém responsabilidades incomparáveis com os governos anteriores pois que o seu eventual fracasso pode traduzir-se
na destruição do País. Será isto coisa impossível em tempo tão civilizado como o nosso? Assim mesmo devem ter pensado os magistrados
de Conímbriga enquanto os Suevos se aproximavam. Em vez de enfrentar o perigo destruíram parte da cidade para construir uma muralha
e, acolhidos atrás desta protecção, esperaram uma fácil escapada às arremetidas dos bárbaros, que esmagaram a cidade em 468.
Para
quem tenha lido alguns documentos políticos de natureza variada, a leitura do programa do Governo é decepcionante. Um documento extenso
que se refere a situação difícil em que o País se encontra mas que se abstém de a expor
Um texto tão longo e oferecendo tudo a toda a gente não oferece oportunidade à crítica. A questão está em saber se o programa
é convincente, se o programa consegue a adesão das forças anímicas da Nação ou se apenas vai convencer aqueles que teimam em ignorar
a realidade. Política há-a de muita variedade. Mas aquela que exalta e move montanhas é aquela que diz a verdade e não promete facilidades.
O curto discurso de Churchill de 13 de Maio de 1940 é recordado por prometer “sangue, suor e lágrimas”, não por minimizar a tragédia
que se aproximava. A comparação pode ter um grão de exagero porque as situações não são comparáveis mas o ponto é a mobilização da
força anímica da Nação.
É certo que muita gente acha que um programa de governo é um documento vago que não compromete a acção
futura do governo e que se destina a passar facilmente nos debates do Parlamento e no escrutínio da imprensa. Todavia, sendo vago
nem por isso deixa de apontar certos caminhos futuros.
A economia
Perante a economia o Estado tem uma grande variedade de
opções, balizadas por duas formas puras. O Estado pode ser o único empresário como foi na URSS, ou o Estado pode deixar aos cidadãos
contratarem livremente entre si as relações económicas, limitando-se a garantir do cumprimento dos contratos e dos direitos individuais.
Como forma intermédia o Estado pode dirigir a economia determinando quais as empresas estratégicas, quais os sectores estratégicos,
estabelecendo limites aos salários e aos lucros, etc. Ou também pode fomentar sectores da economia investindo a formação de mão-de-obra
específica, estabelecendo critérios fiscais favoráveis a um certo tipo de empresas. Hoje há pouca fé no dirigismo económico mas aparentemente
ele teve sucesso na Ásia.
O programa do Governo propõe-se fomentar a produção de bens e serviços transaccionáveis. Portugal não
tem uma mão-de-obra tecnologicamente instruída, nem educada nos princípios do trabalho. A verdade é que a mão-de-obra nacional se
forma mais nas discotecas do que nas escolas. Resta saber, no contexto do mercado mundial, quais os sectores
É certo que as famílias portuguesas
não aceitam a ideia de ver os jovens mimosos que criaram a trabalhar em lagares de azeite, ou em pinhais, ou agarrados ao torno mecânico.
O emprego que se espera é de bata branca, a trabalhar em alta tecnologia, em semanas de 35 horas e a receberem salários compatíveis
com uma vida confortável. Porém, nem sempre o que se espera é possível.
O imobiliário
O programa FMI/EU (ou da Troika) é
essencialmente um plano de aumento da receita fiscal, complementado com poupanças no Estado. A única excepção vem precisamente no
imobiliário, em duas vertentes, o reequilíbrio do mercado de arrendamento e a reabilitação urbana. No último caso recomenda a simplificação
administrativa dos processos.
Nunca é demais exaltar a simplificação administrativa essencialmente porque diminui as oportunidades
de comportamento discricionário de funcionários que provocam o desperdício de recursos. O Simplex do Ministro Manuel Pinho, na parte
que toca ao imobiliário, nunca foi devidamente apreciado.
A inclusão dos tópicos respeitantes à reabilitação urbana é
um indicativo da influência dos sectores da construção junto do anterior Governo. Tendo as obras públicas atingido um ponto de paragem,
tendo-se esgotado a capacidade do País para comprar mais habitações, lojas e escritórios, os marechais do imobiliário pretendem que
o Estado lhes arranje obras para fazerem. Talvez haja aqui a ideia de que a reabilitação é um processo autosustentado a partir do
momento em que se procede à expropriação a baixíssimo custo do capital básico, os prédios em mau estado. Foi este o processo tentado
com as SRU[i] mas do qual as notícias indiciam um fracasso por falta de compradores dos prédios restaurados.
De facto os números não deixam espaço para planos irreais. De acordo com os dados provisórios dos Censo 2011, existem 4.079.577 famílias e 5.879.845 alojamentos. Portanto, os alojamentos excedem as famílias em 1.800.000, um milhão e oitocentos mil. Este número, em si-mesmo, é brutal mas tem que ser tomado com um grão de sal. Isto porque temos a considerar as residências secundárias, as habitações cuja localização lhes retira qualquer utilidade e outras situações. Após retirar todas essas situações ainda vai haver um grande excedente, há muito mais oferta de habitação do que procura.
Ver http://www.ine.pt/scripts/flex_v10/Main.html.
Daí
a ideia de reabilitar e há de facto muitos prédios em mau estado. Todavia, neste contexto o máximo que se pode conseguir é oferecer
casas restauradas a famílias que estão a viver há dezenas de anos às custas dos senhorios e cujas casas seriam restauradas à custa
dos contribuintes. Para o efeito o Estado endividar-se-ia ainda mais, talvez a taxas de juro de 15%, para se continuar a produzir
bens não-transaccionáveis.
Se houver estratégia sobre o imobiliário, esta deverá debruçar-se sobre o destino a dar aos prédios
vazios que irão acumular-se, quer por serem sobras de uma construção fomentada pelos juros baixos e não pela procura, quer pelas execuções
de hipotecas. Casas e lojas vazias em grandes quantidades criando focos de infecção sanitária e moral.
E uma vez que viemos
até aqui, assinalemos que haverá simultaneamente casas vazias e procura de casas e, no entanto, persiste o desencontro entre oferta
e procura. Seja no arrendamento, seja na compra, há certos indivíduos cujo comportamento disfuncional lhes retira a oportunidade de
contratar uma habitação. A reforma do sistema de despejos é o reconhecimento deste facto, mas também será oportuno reconhecer que
o Estado e as classes falantes, se não incitam, pelo menos toleram e até acarinham os comportamentos disfuncionais.
Impostos
Aqui
reside o miolo de todo o programa. Se no restante ele é vago, aqui ele é muito rigoroso. Prevê-se a reavaliação dos prédios nos termos
do Código do IMI e em cima disso o aumento da taxa do IMI. No contexto do mercado actual, os prédios terão avaliações superiores aos
valores de mercado. As coisas irão ao ponto de, por falta de transacções, nem haver valor de mercado para muitos prédios e, nesse
caso, o valor matricial é totalmente arbitrário.
Se este imposto fosse aplicado sem excepções, os promotores imobiliários também
terão que pagá-lo em relação aos prédios vazios que não conseguem vender. Mas como os promotores trabalham essencialmente com crédito,
no sistema conhecido por alavancagem[ii], pouquíssimo é o capital próprio investido nos empreendimentos. Portanto, nas circunstâncias
descritas, o caminho mais plano será declarar falência. A empresa abre falência mas espera-se que o respectivo dono não fique mal.
Porém,
o proprietário privado não beneficia destes artifícios. Todo o seu património responde pelo pagamento do IMI de todos os seus prédios.
Se quiser vender um prédio que lhe dê prejuízo, muito dificilmente o consegue mesmo com um preço abaixo do valor matricial, mas as
mais-valias incidem sobre o valor matricial[iii]. O proprietário urbano é obrigado a suportar os impostos que caírem sobre a sua propriedade
até ao limite da ruína pessoal.
Paga impostos sobre prédios que não lhe dão rendimento e não pode desfazer-se deles. O Estado
não os aceita pelo valor matricial, que é suposto ser
Sistema coerente
Estando este artigo a ser escrito noticiou a rádio
ser, mais ou menos, impossível rever as parceria público-privadas. Iremos verificar sistematicamente que as poupanças previstas no
acordo com a EU/FMI são impraticáveis. Passo a passo, ir-se-á compreender que o actual sistema político e económico ganhou uma poderosa
coerência interna que, salvo milagre, o torna impossível de reformar.
Veremos que o Estado não terá capacidade de cumprir a
sua parte na redução das despesas, contra o que promete o programa de governo. Irão os impostos subir até à desagregação da sociedade.
Será como aconteceu no fim do Império Romano, em que os povos fronteiriços preferiam viver sob o domínio dos bárbaros porque estes
eram mais benignos nos tributos exigidos do que o governo imperial nos seus impostos.
[i] Sobre as SRU ver o nosso estudo http://pl.proprietarios.pt/docs/main/sru.pdf.
[ii] Alavancagem (ou leverage) é um processo de financiamento de um empreendimento que reduz ao mínimo o capital próprio. Desta forma,
se as coisas correrem bem a rendibilidade do capital próprio é enormemente aumentada. Se correrem mal é a falência.
[iii] Nos anos de 1930 as coisas eram parecidas. Ver http://pl.proprietarios.pt/docs/main/valor-matricial.pdf.