A Devolução de Casas aos Bancos
Artur Soares Alves
3-Mai-2012
Em 1997 publiquei uma coleção de textos sob o
título “Propriedade, Arrendamento e a Roda Livre”, com uma capa da autoria de Augusto Cid. O editor foi a CNAPI[1] e grande parte
do mérito da publicação deve-se a Eduardo Carvalho da Silva[2] cujo agudo sentido de humor logo adotou o título. Não se destina este
artigo a falar das minhas memórias sobre Carvalho da Silva, todavia, não deixaria de mencionar ainda o seu pragmatismo que o levava
a procurar a convergência de todos os fatores que pudessem contribuir para a causa do Direito de Propriedade. Foi devido a esta atitude
geral de abertura que escrevi o “O Congelamento das Rendas Urbanas” e depois a “Roda Livre”.
O título pode ser ligeiro mas a
verdade é que se trata de arrendamento, de propriedade e a roda livre é a forma de descrever o desnorte que já nesse tempo se manifestava
no País, paralisado pelos interesses instalados. Porém, relativamente ao assunto deste artigo o que interessa é que, na página 85
e seguintes é abordado sinteticamente o problema do empréstimo generalizado à habitação e enunciados os perigos económicos inerentes.
Tenho que admitir que fui tão adivinho como qualquer pessoa que diga que qualquer dia há de chover. Todas as pessoas melhor informadas
do que eu sabiam que o imobiliário, com os seus preços sempre a subir, era um esquema do tipo Dona Branca[3]. Um dia teria que parar,
parou e agora cumprem-se os fados.
A garantia do empréstimo
A questão tornou-se muito atual porque a generalidade das pessoas
pensava que a única garantia do empréstimo era a habitação comprada a crédito. Se fosse assim o devedor entregaria a habitação ao
banco e a dívida ficaria saldada. Porém, descobre-se agora, com horror, que uma família pode perder a sua habitação e o emprego e,
no entanto, continua a carregar com uma dívida que é como um lastro que a afunda. O que motiva isso é que o preço do imobiliário em
geral está em queda e nos primeiros anos os devedores quase não amortizam a dívida, pagam quase só juros. Por causa da desvalorização
das casas e do crédito sem entrada inicial, o valor da casa é inferior ao valor da dívida.
Diante desta realidade põe-se agora
o problema de, por via legislativa, apagar grande parte das dívidas baseando-se em considerações sociais, como é da tabela; aqui (Público de
5-Mai-2012). Esta tentativa, admitindo que nela há seriedade, é motivo para duas notas.
Estas questões carecem de resposta, embora
seja muito difícil dar-lhes qualquer resposta coerente. A ideia primária é a de decretar que a hipoteca da casa responde pela dívida.
Nesse caso o banco credor terá que suportar o prejuízo sempre que uma casa lhe seja entregue. A entrega da casa é uma atitude perfeitamente
racional para muitos milhares de devedores. Ficam livres de um encargo, ficam com mobilidade e podem encontrar soluções de habitação
mais baratas e sem os compromissos da compra.
Esta solução agrada à visão primária que há acerca do banqueiro. Todavia, se os
bancos começam a acumular dívidas incobráveis terão que abrir falência ou o Estado vai ter que os financiar. A falência dos bancos
representa a perda dos depósitos dos clientes. Mas mais do que isso representa a queda de uma atividade económica fundamental para
a economia pois que lhe cabe gerir os excedentes monetários dos cidadãos. Sem crédito nenhuma economia moderna pode funcionar porque
se deixam recursos em capital humano sem uso, ou sub-utilizados. O capital imobilizado provoca desemprego.
Trinta-e-um
Há
uma expressão “erudita” que descreve a situação — um grande trinta-e-um. De facto estamos presos numa teia em que quase todo o País
foi cúmplice e donde se não vê saída. Começamos com as casas que foram vendidas por preços que nada tinham a ver com a riqueza do
País. Em contrapartida, taxas juros artificialmente baixas davam a ilusão de preços abordáveis. Ao comprador o que interessava não
era o preço nominal, o que interessava era a prestação mensal. Entretanto o emprego mantido à custa do endividamento externo mantinha
salários nominais que pagavam as prestações.
Os preços das casas e do imobiliário em geral eram assim empolados dando uma sensação
de riqueza que era somente aparência. Chegou um momento em que a realidade se impôs e verifica-se que o imobiliário era financeiramente
insustentável. Para os cidadãos veio o desemprego e as quebras salariais. Os combustíveis aumentaram, tudo em geral subiu de preço.
Chega um momento em que é economicamente irracional, senão impossível, continuar a pagar a hipoteca.
Mas isto é apenas uma parte
do problema. Na situação presente, os cidadãos perdem a habitação, não têm emprego, e ainda por cima carregam com uma dívida. Não
são marginais vivendo de expedientes, são cidadãos até aí cumpridores cuja única via de salvação é a emigração ou a marginalidade
económica, isto é, o trabalho pago a dinheiro e sem direitos.
Porém, a perda da casa da família é apenas o despoletar de outros
dramas. Se há um fiador, geralmente os pais ou outros familiares, o credor irá naturalmente exigir-lhe o cumprimento da fiança. No
quadro moral do tempo em que vivemos, dominado pelas causas fraturantes, a família corre grande risco de desagregar-se quando a vida
se torna mais difícil. Para além doutros efeitos, a desagregação de uma família representa aumento de custo de vida dos seus membros,
isto é, novas dificuldades económicas. E, por vezes, custos sociais para evitar a queda na miséria dos envolvidos.
É certo que
quase todo o País foi cúmplice deste processo, mas aqueles que nele estão envolvidos sentem-se vítimas cuja vontade não conta, e com
razão. Quem queria casa não encontrava alternativa no mercado, portanto para se ter um local próprio era obrigatório comprar. E para
comprar era obrigatório aceder a um empréstimo. Com os preços a subir, a tendência era para comprar mais metros quadrados do que o
necessário, com a sensação de que se tratava de um negócio de lucro garantido.
Agora ninguém sabe como sair do trinta-e-um.
E quando ninguém sabe resolver um problema logo aparecem soluções irreais. Ainda alguém se lembra do “arremprar”[4], ao que parece
inventado pelos promotores espanhóis? O citado artigo do Público faz eco da opinião do presidente da APEMIP (mediadores) cuja preocupação
principal é evitar que o valor das casas baixe. Por isso, ainda segundo o artigo, se propõe a renegociação dos contratos de forma
a manter o valor nominal (ou contabilístico) dos prédios, mas baixando as prestações.
Porém, o valor contabilístico é o número
que lá se escreve. Quem faz o preço de um bem é o comprador, que o compra ou não em função do valor que lhe atribui e dos seus próprios
recursos. Ora, o que temos é um País com pessoas mais pobres e uma abundância de imóveis para vender. Como será possível sustentar
os preços num mercado destes?
O arrendamento
Com um mercado de arrendamento a funcionar nada disto aconteceria, como não
aconteceria com um mercado de crédito solidamente fundado em poupança. Um mercado de arrendamento teria funcionado como um regulador
de preços porque diversificava a oferta e não haveria oportunidade para os preços que se praticaram. Mesmo para aqueles que consideram
como essencial ter uma casa própria, o arrendamento é uma etapa que não os compromete para o futuro, enquanto estudam a oferta. E
dá folga às famílias para o princípio de vida sem começarem com uma dívida e com “residência fixa”.
Resultado do congelamento
das rendas, uma percentagem enorme de casas (e comércio) em Lisboa ficou na posse de pessoas que estavam longe de lhes dar o uso socialmente
ótimo, enquanto os cidadãos ativos foram atirados para a periferia. As leis que, com mais rigor, se chamarão contra o arrendamento,
desincentivaram o restauro de prédios que hoje estão a cair, isto é liquidaram capital (sob a forma de casas) que devia ter sido posto
à disposição dos interessados.
Mas isso toda a gente sabia e é nesse sentido que quase todo o País foi cúmplice neste processo.
Não economicamente, mas moralmente ao aprovar a espoliação dos proprietários.
Síntese
Em todo o caso há que reconhecer que
o problema principal foi o crédito criado a partir do nada, com taxas de referência que não eram determinadas pelo mercado do crédito.
A isto juntou-se a venda a crédito sem entrada inicial, num país sem poupança. Pela primeira vez na História existem países com excesso
de habitação. No caso português, em que se construiu com base na dívida ao exterior não se vê como se pode resolver o problema.
É
verdade que o que ainda não se tentou foi o caminho da virtude. Isto é, a poupança, a moderação nos gastos, a dignidade do trabalho…
mas que sabemos nós?
[1] CNAPI — Confederação Nacional das Associações de Proprietários Imobiliários
[2] Eduardo Carvalho da Silva foi
presidente da Associação Lisbonense de Proprietários até ao seu prematuro falecimento no ano de 2000.
[3] Dona Branca, chamada a “banqueira
do povo”. Para quem não se lembra, pelos anos de 1980 ela aceitava depósitos que remunerava à taxa de juro de 10% ao mês.
[4] Arremprar = arrendar + comprar. São ideias… trata-se de um arrendamento com opção de compra por um valor residual. Ideias de pessoas que
decerto não decoraram a tabuada.