Os Problemas da Burocracia Pensante
Artur Soares Alves
28-Jun-2012
Recentemente a ANP foi convidada para participar
num colóquio levado a cabo numa cidade média portuguesa e que visava, segundo os organizadores, recolher opiniões para elaborar um
programa local de habitação. É aqui que a nossa inquietação começa. Um grupo de funcionários municipais pretende fazer doutrina acerca
de como e onde os munícipes devem habitar. O fundamento desta pretensão só pode provir do facto de este grupo entender possuir informação
completa e exclusiva, não somente acerca do presente mas também cerca do futuro. É de supor que esta doutrina se destine a converter-se
em regulamentos, impostos, restrições ao uso dos prédios, enfim, tudo aquilo que encarece os bens mais necessários, dificulta a vida
das pessoas e as empobrece.
Dado que se utilizou o adjetivo pensante convém distinguir os dois tipos de burocracia que interessam
neste contexto. Desde o início da centralização do poder real pelo século XVI o rei necessitava de funcionários que executassem as
suas ordens tal como elas tinham sido concebidas e emitidas. Estes funcionários não estavam autorizados a alterar as ordens recebidas,
nem a exprimir opiniões sobre essas mesmas ordens. Por outro lado, na corte o rei dispunha do apoio de outro tipo de funcionários,
os conselheiros que lhe preparavam e sugeriam as decisões. Estes conselheiros (ou funcionários pensantes) evoluíram para aquilo que
modernamente se chama um ministério. Com o advento do parlamentarismo e da república esta estrutura manteve-se no essencial; do topo
desapareceu o rei (supostamente absoluto) para ser substituído por um presidente ou um primeiro-ministro. Com a intervenção crescente
do Estado nas relações privadas entre cidadãos cresceu a burocracia pensante, isto é, o corpo de funcionários que não executam ordens
mas que pensam e propõem novas medidas de intervenção do Estado.
Estes burocratas não aplicam leis e regulamentos, eles pretendem
não somente criá-los, como também modificar as relações entre as pessoas numa prática justamente chamada engenharia social. Ou, como
se diz também, mudar as mentalidades. E nem sequer as trágicas experiências da União Soviética ou da China maoista os fazem refletir.
Possivelmente porque pura e simplesmente desconhecem estes acontecimentos históricos ou deles retiram apenas a nostalgia do poder
dos burocratas com quem se identificam. As tragédias individuais não são nada perante o sonho coletivista.
Voltando ao colóquio
em causa vale a pena assinalar os pontos mais relevantes porque estes decerto se repetem por centenas de municípios do País. É de
uma cultura que se trata. Deparámo-nos com um conjunto de caraterísticas comuns aos organizadores do evento e que se passam a enunciar.
Hostilidade
em relação ao proprietário. Compreende-se que o proprietário seja um estorvo no caminho da utopia urbana. O ideal seria que toda a
propriedade fosse passada para o domínio municipal e que que houvesse recursos financeiros ilimitados para organizar a cidade em todo
o seu esplendor, o que quer que seja que isto signifique. A moderadora de uma das secções fechou os trabalhos com uma frase lapidar:
“A nova lei do arrendamento não vai resolver nada!”. Nem o facto evidente de a lei ainda ser desconhecida a impede de exprimir um
julgamento completo e definitivo sobre a matéria.
Ignorância económica. Foi salientado com muita veemência que há um excesso
de habitação disponível mas que também há muitas pessoas sem casa. De forma matreira comparam-se as rendas elevadas pedidas nas zonasprime da cidade com o ordenado mínimo nacional e conclui-se que é a ganância dos proprietários que impede o encontro entre a oferta
e a procura. Confundem-se os valores pedidos com os valores efetivamente contratados. E, instintivamente pede-se a mão pesada do Estado
para resolver estas anomalias. Penalização em sede de IMI, fixação de valores máximos das rendas. Nada se quer saber do quadro económico,
jurídico e fiscal que atira as rendas para valores tão altos. Nunca se põe a possibilidade de deixar os preços ajustarem-se às novas
realidades económicas, nunca se propõe a alteração do nocivo quadro legal.
Imaturidade. Impressiona a imaturidade revelada pelos
organizadores deste colóquio. Os convidados só foram bem recebidos quando vieram confirmar as idiossincrasias dos organizadores. As
únicas críticas aceitáveis, recebidas mesmo com temor, foram aquelas que partiram de personagens prestigiadas no mesmo ofício. O resto,
a sociedade civil, estava lá para decorar. Quando uma afirmação feria os preconceitos em que estes burocratas se baseiam eles juntavam-se
em coro para fazer calar a dissidência. Pelo menos um moderador usava da sua função para falar segundo a própria vontade e conduzir
o “debate” para as conclusões do seu interesse.
O perigo e os custos. Ninguém pode prever o futuro, mesmo o mais imediato. Sendo
esta a verdade, numerosas são as pessoas que ganham a vida a preparar planos económicos, seja para os países, seja para as cidades.
Isto seria apenas uma curiosidade se não tivesse custos num País que está arruinado. Porém, se estes planos pudessem pôr-se em prática
o impacto na economia e na liberdade individual seria igual ao que teve na Europa de Leste. Neste contexto — por estranho que esta
afirmação possa parecer — valem mais os políticos cuja ação prática detém os planos destes burocratas pensantes. Obrigados a contactar
com a realidade, obrigados a expor-se à opinião pública nas eleições, tendo que fazer-se eco de interesses económicos contraditórios,
os políticos afinal estão mais próximos da realidade do que estes planeadores.
FIM