Cartório Notarial. O Fiador
Alexandre de Oliveira Perdigão
20-Dez-2012
Nos tempos que correm são, infelizmente, cada
vez mais frequentes as situações de incumprimento das obrigações contratuais e isso traz para a ribalta uma figura tradicionalmenteapagada na relação contratual: o fiador.
(i) Noção. Garantia pessoal vs. garantia real
A lei define o fiador como aquele
que garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.
Logo aqui temos uma distinção clara
entre a fiança, que poderá ser considerada a garantia pessoal por excelência, e a hipoteca, tida como a rainha das garantias reais.
A
destrinça é simples: nas garantias pessoais, como a fiança e o aval, por exemplo, é a pessoa do fiador, incluindo todo o seu património,
que garante o cumprimento da obrigação; por seu turno, nas garantias reais, nomeadamente a hipoteca ou o penhor, é um determinado
bem ou direito do património de uma pessoa que garante o cumprimento da obrigação.
(ii) Acessoriedade e extinção
Uma outra
característica que ressalta da definição legal é a acessoriedade da fiança face à obrigação principal: a obrigação do fiador só existe
se e na medida em que exista a obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.
A
fiança terá, assim, o exato conteúdo da obrigação principal, não podendo exceder esta quer em montante quer em onerosidade. Ao invés,
nada impede que a fiança seja prestada por quantidade menor ou em menos onerosas condições.
A extinção da obrigação principal
determina a extinção da fiança.
(iii) Forma
A prestação de fiança exige a declaração expressa do fiador quanto à sua constituição,
declaração essa a ser emitida pela forma exigida para a obrigação principal. Assim, a fiança prestada no âmbito de um contrato sujeito
a forma especial – escritura pública, por exemplo – deverá seguir essa mesma forma, ao passo que uma fiança constituída no âmbito
de um contrato não formal (verbal, por exemplo) não dependerá de qualquer escrito para se considerar válida, ainda que tal possa vir
a ser de difícil prova em tribunal.
(iv) Principal pagador e renúncia aos benefícios da excussão prévia e do prazo
Comummente
associada aos contratos de concessão de crédito vem a renúncia, pelo fiador, a dois benefícios: o da excussão prévia e o do prazo,
a par com a assunção da qualidade de principal pagador.
As consequências destas renúncias e assunção são vastas, ainda que se possam
resumir em poucas palavras: ao renunciar àqueles benefícios e ao assumir a qualidade de principal pagador o fiador está, em termos
simples, a declarar perante o credor que este poderá tratá-lo a ele, fiador, como se em presença do devedor principal estivesse, ou
seja, a assumir que, em caso de incumprimento, o credor lhe poderá bater à porta a exigir o cumprimento da obrigação, exatamente nos
mesmos termos em que o poderia exigir ao devedor principal.
A não existir essa renúncia ser-lhe-ia lícito recusar o cumprimento
enquanto o credor não tivesse excutido, isto é, esgotado, todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito ou, mesmo
depois de o fazer, se o fiador provasse que a impossibilidade de cumprimento da obrigação, mesmo após a excussão dos bens do devedor,
se ficara a dever a culpa do credor.
Já a renúncia ao benefício do prazo implica que, num contrato de prestações periódicas,
como acontece com a generalidade dos empréstimos, em que a falta de pagamento de uma das prestações importa o vencimento imediato
das restantes, o credor possa exigir ao devedor que pague imediata e integralmente todas as prestações vincendas (ainda não exigíveis)
– aquilo a que a lei chama a perda do benefício do prazo.
É assim porque, nesses contratos de concessão de crédito, quando é
acordado o respetivo reembolso em prestações periódicas, entende-se que o prazo que é estipulado é-o em benefício do devedor. Assim,
quando o devedor principal, que celebrou um contrato de crédito no valor de mil euros de capital e em que foi convencionado o reembolso
em dez prestações de cem euros cada uma, deixar de pagar a quinta prestação, isso significa que o credor pode declarar o vencimento
antecipado do contrato, ou, dito de outro modo, exigir que o devedor pague todas as prestações que ainda não se haviam vencido -que
ainda não eram exigíveis por ele em virtude de ter sido convencionado um prazo mais alargado para o reembolso - de uma só vez.
Ora,
entrando o devedor principal em mora, a obrigação vence-se integral e imediatamente em relação a ele mas não necessariamente em relação
ao fiador, que pode opor ao credor o aludido benefício do prazo.
No fundo, o benefício do prazo permite ao devedor dizer ao credor
que aceita pagar tudo o que for devido mas em prestações, nas datas e montantes inicialmente acordados. Isto a menos que, como é bom
de ver, a ele tenha renunciado contratualmente.
Ainda nesta sede, voltam a ser úteis os conceitos de garantia pessoal e garantia
real atrás referidos, uma vez que, havendo simultaneamente constituição de garantia real por terceiro - que não o devedor principal
- e fiança, o fiador tem o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a garantia real.
(v) Pagamento pelo
fiador: subrogação nos direitos do credor
Caso ocorra o cumprimento da obrigação pelo fiador não se pense que este perde o direito em
relação a tudo o que pagou. Com efeito, o fiador que cumprir a obrigação fica subrogado nos direitos do credor, na medida em que estes
foram por ele satisfeitos, o que vale por dizer que fica credor do devedor principal em benefício do qual havia prestado fiança, nos
precisos termos em que o era o credor originário.
Quase paradoxalmente, ao cumprir a obrigação o fiador substitui, de uma só
vez, ambas as partes do contrato: o devedor, pois satisfaz a obrigação por ele, e o credor, ao tomar o seu lugar na relação creditícia.
(vi)
Fiança e arrendamento
Tão ou mais comum que nos contratos de crédito, o instituto da fiança é frequentemente associado aos contratos
de arrendamento, respondendo o fiador perante o locador (senhorio) relativamente às obrigações - leia-se dívidas - do locatário (inquilino)
no âmbito do contrato de locação, em especial, as relativas a rendas.
No entanto, não obstante o contrato de arrendamento ser
de execução continuada, ele é, a esmagadora maioria das vezes, celebrado por tempo determinado, ainda que automaticamente renovável.
Ciente disto, o legislador estabeleceu que a fiança pelas obrigações do locatário abrange apenas o período inicial de duração do contrato,
ou seja, extingue-se em caso de renovação automática do mesmo, exceto se ali se estipular o contrário.
Nestas situações, em que
o fiador se obriga também relativamente aos períodos de renovação, sem se limitar o número destes, a fiança extingue-se, na falta
de nova convenção entre as partes, assim que haja alteração da renda ou decorra o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação.
(vii)
Notas finais
Como facilmente se compreende, a prestação de fiança a favor de alguém é um ato de extrema generosidade, na medida
em que o fiador assume uma responsabilidade em tudo idêntica à do devedor principal, arriscando todo o seu património até ao concurso
do montante da dívida, de forma totalmente gratuita.
Dir-se-á que, caso a fiança venha a ser executada, o fiador sempre pode
valer-se da sua faculdade de subrogação nos direitos do credor, de modo a reaver do devedor principal os montantes que haja despendido
em substituição deste. Contudo, resulta claro que esse conforto poderá não ser mais do que meramente aparente, pois que, se o fiador
é chamado a cumprir a obrigação isso significa que o contrato já se encontrará em situação de incumprimento e, muito provavelmente,
o devedor terá já deixado de ser solvente.
Arriscaria, pois, dizer, que, mais do que ter confiança no grau de solvência da pessoa
em benefício da qual é prestada a garantia, o fiador deve estar também munido de uma boa dose de esperança quanto à sã execução da
obrigação que um dia entendeu garantir.
FIM