A Propósito do Conceito de Património Construído
Sérgio Infante
28-Fev-2013
Ao longo da história da atividade construtora
do homem, as gerações que se vão sucedendo deparam-se, naturalmente, com formas e estruturas edificadas que foram concebidas e construídas
pelos seus predecessores para fins tão diversos como a habitação, a defesa, o trabalho, o culto religioso ou o recreio.
Os novos
utentes apropriam-se dessas estruturas como podem e do modo que julgam mais adequado aos seus interesses, hábitos e gostos. Reutilizam-nas
tal e qual ou com adaptações mais ou menos profundas, e podem dar-lhes usos totalmente diferentes. Frequentemente, rejeitam-nas, substituindo-as,
abandonando-as ou, pura e simplesmente, destruindo-as como coisas que estorvam ou que incomodam.
O que fica dito é válido também
para conjuntos de estruturas que podem constituir, por seu turno, como que estruturas de segundo grau (ruas, quarteirões, bairros,
povoações, cidades, ou quintas, instalações industriais ou portuárias, etc.)
Seja como for, usar significa, neste caso e por
norma, alterar, e as alterações materiais e formais tendem a ser tanto mais profundas ou extensas quanto mais longo é o tempo durante
o qual a estrutura está efetivamente em uso. De resto, não há estruturas que não se degradem, e a simples necessidade de conservar
leva a alterações.
As intervenções, fossem reconstitutivas ou de simples conservação, fossem de alteração, eram feitas de acordo
com conveniências práticas e com os cânones do gosto em voga no tempo e no lugar, e lançavam mão dos materiais e técnicas em uso no
momento. As possíveis diferenças em relação à construção original não eram motivo de cuidado, muito menos de preocupação.
Da
madeira à pedra
Com o advento do Renascimento, por exemplo, e, depois, do Barroco, os edifícios de madeira que marginavam as
praças das cidades medievais foram sendo progressivamente derrubados e substituídos por edifícios mais elaborados de pedra ou alvenaria.
Isso poderá ter gerado alguns conflitos com os diretamente afectados, mas não consta que tenha incomodado nem um membro sequer do
reduzidíssimo escol de letrados da época.
Desde a antiguidade mais remota, e até há não muitas gerações, os edifícios velhos
foram sendo, na sua imensa maioria, substituídos por outros, sem qualquer espécie de preocupação com o que nós hoje chamamos «integração».
Efetivamente, são recentes, se considerarmos a antiguidade da atividade construtora do homem, as preocupações com o emprego
de formas novas em contexto antigo ou com alterações no uso de novos materiais ou técnicas construtivas.
São abundantíssimos
os exemplos de conjuntos de edifícios ou edifícios antigos a que foram sendo acrescentados elementos de diferentes períodos, estilos
e materiais (praças ou ruas com edifícios de épocas diferentes, catedrais românicas com acrescentos góticos e altares-mores barrocos,
palácios com alas construídas com intervalos de séculos…) e não deixa de ser notável, entretanto, o facto de, ao nosso olhar atual,
esses edifícios (ou elementos deles) tendencialmente parecerem estar em boa relação, constituindo um todo a que chamamos «harmónico»,
apesar de apresentarem caracterizações arquitectónicas tão díspares.
“politicamente correto”
Como é que estas práticas tão
antigas e tão normais, digamos, passam a constituir objecto de preocupação e, depois, de estudo, de reflexão teórica, de teses, de
doutrinas (e de polémicas tão acaloradas, às vezes)?
O que explica que as questões do património tenham deixado de ser discutidas
apenas por um grupo restrito de intelectuais e tenham passado a integrar, pelo menos em grande parte dos países, a agenda do debate
político?
Como explicar que estas práticas, de assunto do foro quase privado que eram, se tenham transformado em matéria de interesse
público, sujeita a constrangimentos cada vez maiores, impostos, não só pela lei mas também pelo tão em voga inefável conceito de “politicamente
correto”?
Até ao início do séc. XIX, só edificações algo especiais, como as destinadas a fins religiosos, ou as que constituíssem
elementos importantes da simbólica do poder, poderiam gozar de um respeito que as tornasse menos vulneráveis a uma eventual destruição.
Ainda assim, as razões que possam explicar esta circunstância pouco terão a ver com as razões que possam explicar, hoje, o respeito
pelo património edificado.
O Romantismo terá tido influência no despontar do interesse das classes mais ilustradas por uma parte
dos objetos a que hoje chamamos património edificado. O que era «velho» ou «antigo» começa a ser “interessante”, “pitoresco”, ou “belo”.
É
óbvio que os homens sempre valorizaram aspectos não estritamente económicos ou utilitários destes objetos, mesmo quando não considerados
portadores de uma relação com o mágico ou o sagrado – aspectos estéticos e aspectos afetivos, por exemplo.
Preservar, aumentar
e transmitir
Mas do que se trata agora é de algo novo. Não é muito fácil explicar em que consiste esta novidade, e mais difícil
é explicar como ela se produziu até adquirir os contornos e implicações teóricas e práticas que hoje tem.
Para designar o conjunto
de objetos edificados merecedores de respeito e tratamento especiais, a generalidade das línguas aproveitou, como é norma, palavras
já existentes em cujo conteúdo nocional estavam presentes características reputadas essenciais dessa realidade que, embora longe de
se esgotar em objetos concretos, é por eles, não só suportada, como privilegiadamente representada.
Nas línguas latinas, deitou-se
mão de palavras cujo étimo comum (patrimoniu-) remete para algo de valioso que vai transitando de pais para filhos, os bens de família.
E o Inglês serviu-se de uma palavra (heritage) que exprime também algo essencial ao conceito de património em apreciação (com origem
no infinito latino hereditare, por mediação do Francês Antigo).
As palavras não dirão tudo, mas dizem algo importante – património
é algo valioso que, imperativamente, deve, não só ser preservado e, se possível, aumentado, como transmitido.
FIM